quinta-feira, 4 de junho de 2009

O mundo antes do Homem - MARGUERITE YOURCENAR




Mas vamos demasiado depressa: mal-grado nosso, deslizamos pela ladeira que nos leva ao presente. Contemplemos primeiro esse mundo que ainda não estorvamos, essas tantas léguas de floresta atravessada por charnecas que se estende, quase ininterruptamente, de Portugal à Noruega, das dunas às futuras estepes russas. Recriemos em nós esse oceano verde, não imóvel, como o são três quartos das nossas representações do passado, mas movendo-se e alterando-se no curso das horas, dos dias e das estações, que correm sem terem sido contados pelos nossos calendários e pelos nossos relógios. Olhemos as árvores de folha caduca arruivando-se no Outono, e os abetos balançando na Primavera as suas agulhas completamente novas ainda cobertas por uma delicada cápsula castanha. Banhemo-nos nesse silêncio quase virgem de ruídos da voz e dos utensílios humanos, onde se ouvem apenas os cantos dos pássaros ou o seu chamamento de alerta quando um inimigo, doninha ou esquilo, se aproxima, o zumbido de miríades de mosquitos, ao mesmo tempo predadores e presas, o bramido de um urso, procurando na fenda de um tronco um favo de mel que as abelhas defendem zunindo ou ainda o estertor de um cervo despedaçado por um lobo-cerval.
Nos pauis ensopados em água, um pato mergulha; um cisne, que toma balanço para tornar a ganhar o céu, faz o seu enorme barulho com as asas abertas; as cobras deslizam silenciosamente sobre o musgo ou sussurram sobre as folhas secas; as ervas rígidas tremem no cimo das dunas ao vento de um mar que ainda não sujou o fumo de uma caldeira, o óleo de um carburante, e sobre o qual não se aventurou ainda nenhuma nau. Por vezes, ao largo, o jacto potente duma baleia; os saltos alegres dos marsuínos, tal como os vi da proa de um barco sobrecarregado de mulheres, crianças, utensílios domésticos e edredões transportados ao acaso, no qual me encontrava com os meus em Setembro de 1914, juntando-me à França não invadida, por via da Inglaterra; e a criança de onze anos sentia já, confusamente, que essa alegria animal pertencia a um mundo mais puro e mais divino que aquele onde os homens fazem sofrer os homens.
Mas caímos de novo na anedota humana: dominemo-nos; giremos com a terra que rola como sempre inconsciente de si mesma, belo planeta no céu. O sol aquece a delgada crosta vivente, faz abrir os botões e fermentar as carcaças, retira do solo um vapor que depois dissipa. Em seguida, grandes bancos de bruma esbatem as cores, abafam os ruídos, recobrem as planuras terrestres e as ondas do mar com uma única e espessa toalha parda. A chuva sucede-lhe, ressoando em biliões de folhas, bebida pela terra, sugada pelas raízes; o vento verga as árvores jovens, abate os galhos velhos, varre tudo com um imenso rumor. Por fim, instalando-se de novo, o silêncio, a imóvel neve, sem outro traço sobre a sua extensão que não o dos cascos, das patas ou das garras, ou as estrelas que nela gravam as aves ao pousar. As noites de luar, vislumbres a bulir sem que seja preciso um poeta ou um pintor para os contemplar, sem que um profeta esteja lá para saber que, um dia, espécies de insectos grosseiramente caparazonados se aventurarão lá em cima, na poeira daquela bola morta. E, quando a luz da lua não as esconde, as estrelas brilham, mais ou menos dispostas como o estão hoje, mas ainda não ligadas, por nós, entre si, em quadrados, em polígonos, em triângulos imaginários, e não tendo ainda recebido os nomes de deuses e de monstros que não lhes dizem respeito.

Mas já, e um pouco por todo o lado, o homem. O homem ainda diperso, furtivo, por vezes perturbado pelos últimos avanços dos glaciares demasiado próximos, e que não deixou senão poucos traços nesta terra sem cavernas e sem rochedos. O predador-rei, o lenhador dos bichos e o assassino das árvores, o caçador ajustando o seu laço onde se estrangularão os pássaros e as suas estacas sobre as quais se empalarão os animais de pelagem; o monteiro que espreita as migrações sazonais para conseguir a carne seca dos seus Invernos; o arquitecto das ramadas e dos toros descascados, o homem-lobo, o homem-raposa, o homem-castor reunindo em si todos os engenhos animais, aquele de que a tradição rabínica diz ter a terra recusado a Deus um punhado da sua lama para lhe dar forma, e de que os contos árabes asseguram terem os animais tremido ao verem esse verme nu. O homem com os seus poderes que, seja qual for a maneira em que os avaliemos, constituem uma anomalia no conjunto das coisas, com o seu dom terrível de ir mais além no bem e no mal do que o resto das espécies vivas por nós conhecidas, com a sua horrível e sublime faculdade de escolher.


MARGUERITE YOURCENAR, Le Labyrinthe du Monde II:, Archives du Nord, Paris, Gallimard, 1998, 18-21.

Nenhum comentário: